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Joel Rufino
Vivi gostava de aula de história, mas para guardar data era uma tristeza. A professora:
— Dom Pedro proclamou a Independência em 1822.
Daí a um minuto perguntava:
— Em que ano foi a Independência do Brasil?
Vivi não sabia.
A prima, Isabel, lhe contou como foi o Descobrimento do Brasil:
— Isso aqui era coberto por uma lona enorme, de circo. Pedro Álvares chamou os filhos, cada um pegasse numa ponta. Contou: um, dois, três… Já! Levantaram ao mesmo tempo. Estava descoberto o Brasil.
Não acreditou. Como haveria lona para cobrir de São Paulo a Dores do Indaiá, onde nascera o pai? Manaus, onde morava a avó, nem se fala.
Em 1556, contou outra professora, os índios caetés fizeram uma barbaridade.
Uma sombra passou pelos olhos da menina. Não gostava da palavra barbaridade. Vira numa história em quadrinhos rasparem à força a barba de um velho. Legenda: “Barbaridade.”
O bispo dom Pero Fernandes Sardinha voltava para Portugal quando o navio afundou em Alagoas. Nadava bem, chegou à praia, se alimentou de pitangas e uns peixinhos pequenos. Apareceram os índios. Sem qualquer respeito comeram o bispo.
— Como chamava ele, dona Juliana?
— Sardinha.
A prima Isabel a puxou de lado:
— Foi assim que se inventou esse peixe.
Vivi imaginou o bispo trancado em lata de azeite. Os caetés em volta da latinha retangular:
— Está inventada a sardinha!
Tinha medo de ir e voltar da escola.
Na esquina havia sempre um despacho de umbanda: alguidar, cachaça, velas, galinha preta. Ela, Isabel, Eduardo e Raphael, fazendo o mesmo caminho, pulavam pra outra calçada.
— No Egito — contou a professora —, quando morria um faraó, enterravam ele na pirâmide. De lado, botavam comidas, bebidas e objetos.
— Que objetos?
— Imagine. Pulseiras, caixas de joias, brinquedos de quando o morto era criança.
— E velas, e galinha morta, e cachaça?
— Cachaça não se conhecia, vela não sei. Botavam cerveja, com certeza.
— Pra quê?
A professora embatucou:
— Eram inteligentes, mas acreditavam que no outro mundo o morto fosse comer, beber, luxar e brincar.
— Se eram inteligentes, como iam acreditar nessa barbaridade?
— Pois é, ninguém sabe. Muitos povos acreditavam em despacho. Acham que devemos devolver à natureza o que gastamos dela.
Em casa, Vivi perguntou ao tio, que lia em outras línguas. Ele explicou:
— A religião dos faraós era uma espécie de macumba. Veja só, Victoria.
A professora de geografia mandou desenharem a Terra. Trabalho de casa.
Victoria botou uma lata de ervilha na folha branca, foi contornando com a caneta. A mãe disse que estava errado:
— A Terra não é bem redonda. Parece mais tangerina.
— Como tangerina?
— Bergamota, mexerica. Não é redonda. É achatada.
Consertou. Lá estava o planeta do jeito que é. Pôs os continentes em cor de abóbora. Os mares azuis. Os polos deixou na cor branca do papel.
Descobriu que o nome do planeta está errado:
— Devia se chamar água.
Nunca deixava de admirar o que fizera. Olhou de perto, de longe, com um olho só, pôs os óculos da mãe pra aumentar. Nunca fizera uma coisa assim. Colou a maravilha numa cartolina dura. Recortou. Enfiou um lápis no meio, começou a girar o planeta. Passeava de lá pra cá. Levou a obra ao quintal, mostrou ao cachorro, entrou no galinheiro dando aula às galinhas:
— É aqui que vivemos. Se vocês tivessem cérebro iam compreender.
Quando alguém era teimoso, a mãe dizia:
— Cérebro de titica.
Devia ser o caso das galinhas e seus parentes.
O irmão, com inveja, notou uma coisa:
— O seu planeta Terra ficou bonito. Mas o Brasil está de cabeça pra baixo.
A menina deu uma volta completa no lápis. O Brasil ficou certo, a parte mais larga pra cima.
A professora explicou:
— Olha, no espaço não tem lado de cima nem lado de baixo. O Brasil pode ficar de cabeça pra baixo ou de cabeça pra cima. O freguês escolhe.
Victoria não entendeu.
— Explico melhor. Imagine que você é um ET. Vem voando pra nos visitar. Como vai aparecer o Brasil? Depende do lado que você vem.
Victoria continuou na mesma. A professora coçou a cabeça. Era boa de explicação:
— Esquece o ET. Imagine então que você é aquela mosca ali no teto. Está olhando pra nós aqui embaixo. Você está vendo a gente em cima, certo?
— Mas quem está em cima é a mosca.
— Você começou a entender. Pra mosca nós estamos em cima, pra nós a mosca é que está em cima.
Em casa, Victoria ficou girando o planeta de cartolina. Ora o Brasil ficava de cabeça pra baixo, ora não ficava.
Tio Nelson trouxe de viagem um chapeuzinho e um poncho de alpaca. Victoria vestiu os presentes e saiu imitando a moça que viu na televisão:
— Sou uma cholita boliviana.
O vendedor de cuscuz, que passava toda tarde, deu um muxoxo. Exigiu explicação.
O tio socorreu a menina:
— Cholita, naquelas bandas, quer dizer moça bonita. Nem branca, nem india. Moreninha. E de trança por baixo do chapeuzinho. Nunca viu?
— E este capote? perguntou o vendedor.
— Não é capote, seu Adão. Por favor.
O tio de Victoria via tudo no dicionário:
— É poncho. Capa quadrangular de lã grossa com uma abertura no meio por onde se enfia a cabeça. Não está vendo?
Victoria, exibida, sacudia as pontas do poncho:
— Esse meu é de alpaca.
Vendo que ninguém dera importância à informação, o tio informou:
— Alpaca é um animal que vive no Peru e na Bolívia. Parente distante do camelo.
— Já sei — disse o cuscuzeiro. —É o mesmo que lhama. E a Bolívia fica na Ásia.
Victoria hesitou:
— Quer dizer… Fica e não fica…
Se despediu e entrou em casa, batendo os saltos. Procurou o dicionário. Alpaca é lhama? E onde fica a Bolívia?
Procurou na letra “b”. Nada. Procurou de novo, marcando com o dedo. Não queria pedir socorro ao tio.
— Mãe! O dicionário não tem Bolívia. Bem falei que este não presta.
Dona Teresa explicou que dicionário não tem nomes próprios, nem de países. Consultasse o atlas.
Victoria não acreditou no que leu. Então um país que fala três línguas, as mulheres usam poncho de alpaca e chapeuzinho redondo é menor que a Bahia?