X
Cidinha da Silva
Dentro da sala tinha um daqueles jardins suspensos de prédio chic que o motoboy admirava sempre que ia entregar documentos. Pessoal maneiro trabalhava ali, arquitetos e urbanistas descolados.
Absorto, ele mirava o jardim quando ouviu um barulho seco vindo do janelão de vidro, mas não conseguiu perceber o acontecido. Desceu ao finalizar a coleta de assinaturas e viu o passarinho estatelado na calçada. Compreendeu tudo. Inconformado foi até lá e moveu o bichinho para os lados, mexeu no bico, ameaçou uma massagem cardíaca com o indicador e o fura-bolo, mas o coitado não respirava mais.
Maldisse a necessidade de ostentação de riqueza que enganava os passarinhos, ainda mais com aquele verde e aquelas flores coloridas na parte de dentro da rica parede de vidro.
O motoboy estava desnorteado. Ia embora e deixava o corpo ali ou o levava no bolso para enterrar no caminho de casa, à noite? Precisava resolver rápido porque já era hora de voltar ao corre, ainda tinha cinco tarefas a cumprir antes do almoço.
Decide levá-lo para um enterro digno. Quando o toca pela segunda vez, enquanto estuda a melhor forma para carregá-lo no bolso, recebe uma bicada leve na mão. Ele sorri e se lembra da crônica de Drummond lida na escola, quando o passarinho ressuscitava.
Qual nada, por aquela ele não esperava. A bicada partiu de um pássaro tristonho que velava o corpo. A bichinha não era sozinha na vida, o que por um lado era bom, mas, e se tivesse uma ninhada e o companheiro, presume que é um macho pelo tamanho do peito e do bico, estivesse ali pensativo, sentindo a dor da perda, mas também ruminando o futuro dos filhotes desamparados?
Homem feito, o rapaz abraça o capacete da moto e desaba num choro doído. São muitas as lágrimas, quase tantas quanto os colegas perdidos em acidentes de trânsito.
Acorda das lembranças quando pingos grossos de chuva espetam-lhe o rosto. E quem continua ali, de guarda? O passarinho, aparente viúvo. O motoboy decide que não seria justo levar o corpo dali. Também não pode deixá-lo na calçada porque seria chutado ou esmagado por pés desatentos, ou mesmo varrido pela limpeza urbana e triturado junto com o lixo.
Não, a passarinha merecia um final digno. O jeito era explicar a situação ao viúvo e fazer uma proposta. Achega-se a ele e explica. O viúvo aquiesce, grato, pois ele mesmo não sabia o que fazer. O motoboy olha para os lados, certifica-se de que ninguém o observa, arranca uma planta da jardineira mais próxima, faz um buraco, deposita o corpo e coloca a terra em cima, com o máximo zelo permitido pela pressa.
O motoboy já perdeu muito tempo de trabalho, limpa a mão na calça, acelera a moto e vai embora. O viúvo fica por ali bicando a terra, ensaiando outro buraco.