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Vozes do texto
O termo “voz” não se refere apenas ao discurso, oral ou escrito, de indivíduos e instituições. Números, estatísticas, dados quantitativos ou qualitativos de diferentes ciências também são considerados vozes, na medida em que são assumidos socialmente por especialistas e/ou instituições que funcionam como protagonistas de um discurso. Num texto argumentativo, as vozes assumem funções específicas, e tendem a se organizar como num debate.
“Tá com dó do refugiado? Leva pra casa!”
Leonardo Sakamoto, 08/09/2015, 12h56
Ao citar a frase entre parênteses, Sakamoto dá voz a uma opinião corrente de parte da população brasileira sobre refugiados. E ao manifestar sua crítica a respeito, anuncia uma segunda voz: a posição que pretende defender no artigo.
As duas posições/vozes são retomadas. A posição defendida pelo articulista se explicita, em favor de políticas específicas para os refugiados. Em contraposição, reaparece a voz dos que “viram bicho” diante dessa opinião.
Novamente citadas, as duas posições/vozes são atualizadas em relação à “última crise de refugiados na Europa” e seu contexto político nacional e internacional.
O jornalista interpela diretamente o leitor a respeito da situação referida no parágrafo anterior. Ao mesmo tempo, põe em cena duas novas vozes em contraste: a das redes sociais, com seus filtros cor de rosa, e a de Ziraldo, autor de um livro infantil, Flicts, que defende o direito de um lugar ao sol para toda e qualquer diferença. No livro, flicts é uma cor que, por ser diferente e única, não encontra um lugar próprio, seja no arco-íris, seja em uma bandeira qualquer. Mas acaba se reconciliando com sua singularidade; e, assim, conquista o seu posto.
Dando à questão dos refugiados uma dimensão internacional, o autor menciona as boas iniciativas individuais; mas aponta para a responsabilidade do Estado, na questão. E contrapõe a voz de “quem acha que o Estado é um simples entrave” à daqueles que o concebem como um instrumento “que construímos para impedir que nos devoremos”.
Duas vozes oficiais distintas são confrontadas: a do atual “Estatuto do Estrangeiro” e a “nova lei brasileira de migração”, qualificada no artigo como mais humanitária. Sakamoto conclama o Estado brasileiro a aprovar o mais rápido possível a nova lei, argumentando, em sua defesa, que “migrantes geram riquezas para seus novos países”. Vale uma atualização: a Lei de Migração foi aprovada em 2017 e revogou o Estatuto do Estrangeiro mencionado por Sakamoto como um Walking Dead, em referência à série de televisão sobre zumbis que continuam a caminhar, mesmo depois de mortos.
Ao afirmar que “uma mentira contada mil vezes vira verdade”, o jornalista alude a uma nova voz: a de Joseph Goebbels, célebre ministro da propaganda da Alemanha nazista e autor da frase citada. Assim, o articulista aponta o que há de nazista na posição dos que divulgam mentiras, como a de que imigrantes são um estorvo econômico, com a intenção de fazê-las passar por verdades.
A conclusão aparece em primeira pessoa, na voz do próprio autor, dirigindo-se a seus oponentes. Se formulada em terceira pessoa, como é o usual nos artigos de opinião, a conclusão seria algo como: “Aqueles que têm medo do suposto perigo dos refugiados devem sentir-se numa selva. Devem, portanto, ser dignos de dó”.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. É professor de Jornalismo na PUC-SP, comentarista da TV Cultura, colunista do UOL e diretor da ONG Repórter Brasil.
Fonte: Blog do Sakamoto
– identificar-se e confundir-se com as vozes que sustentam uma resposta positiva para a questão;
– conclamar o Estado a fazer a parte que lhe cabe;
– chamar o leitor às falas;
– interpelar diretamente seus opositores.
A “catarse” à luz da estratégia argumentativa
O Dado (D) de que o artigo parte é a fala que lhe dá título: “Tá com dó do refugiado? Leva pra casa!”. O ponto de partida de toda a argumentação é, portanto, uma voz que o autor qualifica como “icônica”, representativa, portanto, do senso comum, no que diz respeito aos refugiados. Pelas críticas feitas a essa primeira voz — “é utilizada por pessoas com síndrome de pombo-enxadrista” —, o autor deixa evidente que ele pensa de outra forma. Por outro lado, na forma como descreve os refugiados (“gente pobre, parda, perdida ou violada que habita as fresas das grandes cidades”), assim como na expressão que utiliza para se referir às vozes que se levantam em favor deles (“clamor por políticas públicas”), Sakamoto faz ouvir uma segunda voz: a sua própria e a de todos os que pensam de forma semelhante.
No parágrafo seguinte, essa segunda voz se explicita: trata-se da fala que defende “políticas específicas que garantam qualidade de vida para esse pessoal”. E o seu antagonismo com aqueles que “não têm dó dos refugiados” fica claro.
Na sequência, o texto alterna essas duas posições. Em alguns momentos, a primeira voz se manifesta, e sua fala é marcada pelas aspas; em outros trechos, os comentários do autor ecoam e desenvolvem o discurso da segunda voz. Favoráveis ou contrárias a esses direitos, as posições se alternam, fazendo com que o texto evolua como um drama.
Nas reflexões que contestam a primeira voz, no quinto e no sexto parágrafos, surgem, então, os argumentos, ou seja, as Justificativas (J) que sustentam, no artigo, a defesa de políticas públicas específicas para os direitos dos refugiados: as iniciativas pessoais são “ótimas”, mas insuficientes; o Estado tem, por princípio, responsabilidade na questão; além disso, só o Estado tem os meios indispensáveis a ações da envergadura necessária; o Estado não é um entrave, e sim uma forma de não nos devorarmos; o Estado brasileiro deve agilizar a aprovação da nova lei de migração, um avanço em relação ao atual Estatuto. Todas elas se reportam ao papel que o Estado deve desempenhar na questão; nesse sentido, todos esses argumentos são Suportes (S) uns dos outros.
Por conta da estrutura dramática do texto, o articulista, exatamente como fazem os atores, em certas peças, interpela o público em meio ao “espetáculo”: “Não viu esse tipo de coisa na sua timeline? Acha que o mundo é só solidariedade? Culpe o algoritmo de sua rede social que te colocou numa bolha cor de rosa. O mundo lá fora, minha gente, é flicts”. Ao fim do drama/artigo, o jornalista dirige-se a seus opositores, numa fala que, respondendo diretamente à que dá título ao texto, representa a Conclusão (C) de todo o seu raciocínio/diálogo: “Pessoal que pensa assim, na boa, sua vida deve ser ruim demais”.
Apesar da organização original do artigo, os argumentos e contra-argumentos expressos por essas vozes antagônicas garantem a estrutura dissertativa do texto: o primeiro parágrafo, correspondente aos Dados (D), funciona como Introdução; os parágrafos de 2 a 6, que alternam e confrontam vozes que portam Justificativas (J) para as ideias com que o autor se identifica e, por isso, defende, são o Desenvolvimento; finalmente, a tese apresentada no último parágrafo corresponde à Conclusão.
Sujeitos invisíveis
A reportagem da Revista Fapesp compartilha resultados de pesquisas sobre os desafios enfrentados por crianças e adolescentes imigrantes e refugiadas(os) no Brasil.
Leia: https://revistapesquisa.fapesp.br/sujeitos-invisiveis/