X
Rayana do Nascimento Cruz
Um estado que se orgulha por de suas veias correr um sangue cultural extremamente rico que eclode na voz da preta cirandeira Lia de Itamaracá, nas rodas do coco, na xilogravura de J. Borges, na arte armorial do mestre Suassuna, no fervor do frevo e na apoteose do maracatu, atualmente tem sido invadido por uma nova febre popular – o passinho – que tomou conta do cenário artístico pernambucano, nos fazendo refletir: – É um retrocesso cultural?
Na ilha de Itamaracá há as “batalhas do passinho” que reúnem grupos para as disputas de coreografias. Esse movimento virou um símbolo de resistência da periferia e um grito de identidade na vida dos jovens que fazem parte dessa cultura de massa, pois para muitos torna-se um muro de contenção para a violência e as drogas, já que muitas vezes os integrantes dos grupos ficam horas ensaiando, criando coreografias e assim ficam longe do contato com a hostilidade e a perversidade que existem, infelizmente, nas comunidades da Ilha.
Para Ricardo Silva, integrante de um dos grupos de passinho da Ilha, o importante mesmo é ser reconhecido, pois junto com o brega funk, esse novo ritmo tem tirado muita gente do tráfico. O jovem ainda acrescenta que poderia ser mais um na Penitenciária Barreto Campelo, mas preferiu o lado da arte e se deu uma nova chance. Sem dúvida, um movimento artístico como esse muda a vida de um ser humano, pois independente de gênero, classe social, etnia ou orientação sexual, a arte sempre transforma. Assim, como arte vinda dos menos favorecidos, o passinho também é uma mobilização social. É preciso que seja reconhecido, pois veio despir o preconceito da cultura periférica que desde sempre é excluída da sociedade, como o rap, o grafite e outras culturas que fazem parte parte das comunidades.
Por outro lado, muitas letras de música não são nenhuma composição da Bia Ferreira ou do Caetano Veloso e contribuem com a cultura do machismo que está enraizada na sociedade. E, é claro que são sexistas, pois abordam os interesses masculinos com base nos seus desejos carnais, tratando a mulher como objeto, como no trecho: “Arrastei ela pro meu carro, dei um trato e um amasso”, dos cantores Shevchenko e Elloco. Essa cultura de tratar a mulher como propriedade masculina enfraquece o movimento feminista que em Itamaracá ainda é muito pequeno devido a pensamentos patriarcais e machistas. Felizmente já há grupos que relutam para que suas músicas fujam das características negativas, mas continuam sendo vítimas de críticas, talvez por pertencerem a um movimento de periferia ou pela frequente presença de crianças nas disputas que, para muitos ilhéus, demonstra a substituição da antiga dana das cadeiras infantil pela “novidade” do brega funk e a igualdade da ciranda pela rivalidade das batalhas. É mesmo um retrocesso?
A Ilha de Itamaracá é a terra da ciranda e durante anos vem sofrendo uma desvalorização cultural e o passinho, de certo modo, chega a ameaçar a cultura itamaracaense, pois grande parte da população jovem não dá mais voz e espaço às belas tradições da ilha que estão a cada dia sendo esquecidas. Como exemplo temos a “sambada de coco” que ocorria na praia da colônia de pescadores e acabou sendo interrompida por falta de verba. Como símbolo de resistência, o grupo Nossa Cultura Tem Som foi criado para homenagear as mestras Lia da Ciranda, Anjinha e Totinha do Coco e também resgatar esse valor cultural que ao longo dos anos vem perdendo espaço para os produtos da globalização.
É perceptível que as ideias fixas só crescem quando se fala em ruptura de tradição, mas quando são cheias de histórias, é difícil ficar ao lado de uma cultura que tem pontos negativos, ofensivos para quem está fora do movimento e muitas vezes age por discriminação. Acredito que o passinho não seja um retrocesso propriamente dito, pois é fato que está ajudando a vida dos jovens nas comunidades de Itamaracá. Mas para ser reconhecido como mobilização, precisa de uma “reforma” sem deixar vestígios de preconceito, machismo e conteúdos eróticos que infelizmente são fortemente consumidos pela indústria.